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  • Giovanna Cerveira, Emily Ebert e Marcelo Monteiro

Desamparados, artistas e trabalhadores da cultura somam os impactos da pandemia


Cena do espetáculo "Expresso Paraíso", da companhia ATO (Foto: Adri Marchiori)

Em 28 de março de 2020, o cantor Gusttavo Lima fez uma transmissão ao vivo no YouTube, direto de sua fazenda. O formato que se convencionou chamar de "live" não foi criação sua, mas a roupagem despojada, literalmente em casa – sem deixar de lado toda uma estrutura e produção –, o consagrou. Apenas na primeira transmissão foram 10 milhões de visualizações. Ao final de 2020, depois de cinco lives, Lima figurou entre as figuras mais rentáveis do showbiz brasileiro. Mesmo longe do público, faturou cerca de R$ 10 milhões com as apresentações "caseiras".


Do outro lado do picadeiro, artistas, técnicos e toda uma gama de trabalhadores que dependem do contato com o público acumulam perdas ao longo de um ano e meio de pandemia. O silêncio de casas de shows, teatros e circos vazios é uma ameaça econômica. Se falta emprego para os trabalhadores da cultura, falta renda.


Um estudo da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) revela a dimensão do apagão no setor cultural. 15% dos entrevistados revelaram ter perdido até metade da renda por causa da pandemia. Para 41%, o dinheiro simplesmente acabou.


Sancionada em junho de 2020, a Lei Aldir Blanc destinou R$ 3 bilhões em renda emergencial para os trabalhadores da cultura, editais e subsídios para a manutenção dos espaços artísticos e culturais. Para a secretária de Cultura do Rio Grande do Sul, Beatriz Araujo, os recursos da Lei foram decisivos para a subsistência da classe artística. “Tanto no que se refere ao montante quanto às regras de aplicação, foram e ainda estão sendo fundamentais”, conta.


Investimentos em cultura acumulam perdas ano após ano


Representando cerca de 4% do PIB nacional, o setor da economia criativa vem passando por um processo histórico de sucateamento. “Nos últimos anos a gente tem visto um recrudescimento em relação à cultura e a classe artística, inclusive se tornando inimigo do estado sob o olhar de uma parcela da sociedade e do próprio governo”, afirma o Coordenador de Artes Cênicas de Porto Alegre, Jessé Oliveira.


Jessé, que foi gestor da Casa de Cultura Mário Quintana, também na capital, durante quatro anos, destaca a importância da Lei Aldir Blanc. “Capitalizou recursos que nunca tinham sido distribuídos, sobretudo atingindo determinados grupos, como os politicamente minoritários: negros, comunidades LGBT e indígena”, explica.


No Brasil, o esvaziamento dos palcos não é de hoje. Os repasses do governo federal à cultura vêm diminuindo ano a ano. De acordo com dados do Portal da Transparência, o país saiu de R$ 3 bilhões em investimento, no ano de 2016, para os atuais R$ 1,7 bilhões. A cultura não perdeu apenas o status de ministério a partir do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), mas também 43% do seu orçamento.


Para a secretária Beatriz Araujo, a gestão da cultura não se dar por um ministério é um prejuízo para o país. “Este longo período sem o Ministério da Cultura é uma lacuna irrecuperável na vida cultural dos brasileiros. O que se depreende é que – para este governo – a Cultura não é importante a ponto de ter um assento entre os ministros”, lamenta.


Reduzida ao status de Secretaria Especial, a pasta passou por dois ministérios desde 2019 – da Cidadania para o Turismo – e tem sido palco para um show de horrores. Da propaganda de Roberto Alvim inspirada no nazismo, passando pelo "pum do palhaço" de Regina Duarte, ao atual ocupante do cargo, o ex-ator de Malhação Mario Frias. Apesar dos estilos próprios, os três têm em comum a subserviência ao presidente, escancarada na última segunda-feira (12).


O jornal Folha de S.Paulo revelou que a Funarte negou a captação de recursos através da Lei Rouanet a um festival de jazz que, pelo Facebook, se definiu como "antifascista e pela democracia". Frias argumentou que, enquanto for Secretário Especial da Cultura, "ela será resgatada desse sequestro político/ideológico".


Sucateamento deixa teatros e espaços culturais à mercê da violência


No dia 2 de fevereiro, a fiação elétrica e o sistema de ar condicionado do Teatro Renascença foram furtados. No dia seguinte, o mesmo aconteceu na Sala Álvaro Moreyra. De acordo com Jessé, os espaços não tinham vigilância noturna, ficando vulneráveis à ação de criminosos.


É justamente na estrutura das casas que o gestor aponta graves problemas. “Tem portas caindo, buracos no chão e problemas nas paredes. Nesse tempo, tive que fazer reparos e recolocar a fiação”, conta.


Dos quatro teatros municipais, apenas os dois ainda funcionavam antes da pandemia. O Teatro Elis Regina, localizado na Usina do Gasômetro – um dos pontos mais visitados da capital gaúcha – nunca chegou a abrir oficialmente. O espaço permanece em status de "em obras" há 23 anos.


Jessé Oliveira, coordenador de artes cênicas de Porto Alegre (Foto: arquivo pessoal)

Em meio às reformas essenciais para a reabertura dos espaços, o coordenador esbarrou em outro problema: as restrições financeiras. A dotação orçamentária da pasta, que já foi de R$ 600 mil, neste ano não chegou a R$ 80 mil. A Secretaria de Cultura num todo sofreu com uma significativa redução no orçamento, que de R$ 100 milhões em 2014, passou para R$ 20 milhões em 2021, o que representa um valor 80% menor.


O coordenador falou sobre um possível retorno às atividades nos teatros municipais, seguindo protocolos estabelecidos junto à Secretaria de Cultura. Entretanto, destacou que qualquer ação do poder público dependerá do andamento das reformas estruturais. “Se eu tivesse recebido os teatros em melhores condições, ou se houvesse maiores recursos financeiros para as reformas, com certeza até esse momento eles já estariam estruturalmente prontos para receber o público”, lamentou.



Como se faz arte numa guerra?


A arte acompanha Danuta Zaghetto desde a infância. A presença nos palcos começou no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre. Na instituição, ela tinha aulas de teatro – e foi ali que nasceu a atriz. Começou a Licenciatura em Teatro em 2007, e as portas se abriram. “Ali foi realmente onde eu comecei a entender a dinâmica toda do trabalho em si”, conta.


Em 2011, passou a atuar no Vida Urgente, da Fundação Thiago de Moraes Gonzaga, teatro com um discurso pedagógico. O vínculo era com carteira assinada, o que é raro. “São poucos grupos ou espaços que realmente contratam um ator com esse direito trabalhista que ele merece”, conta. Naquele mesmo ano, Danuta criou um grupo de teatro com colegas, a ATO Cia Cênica. Com a peça “O Feio”, a companhia ganhou o Prêmio Açorianos de Melhor Espetáculo, além do Prêmio Funarte de Teatro, e viajaram pelo país. “Era um prêmio, não tinha que justificar tabela orçamentária. Ganhava 100 mil para viajar com teu grupo. Era um edital muito lindo”, relembra.

Danuta Zaghetto no espetáculo "Expresso Paraíso", da companhia ATO (Foto: Adri Marchiori)

Estabilidade financeira é algo que deveria vir junto com a profissão, mas o cenário não é assim. Danuta conta que, na maioria das vezes, o trabalho tem que ser triplicado para alcançar o que deveria ser a remuneração mínima. “Como o meu país não investe em educação, não investe em cultura, eu vou ter que dar meu jeito”, afirma. Independente do dinheiro, a paixão pela arte é maior.


“Ninguém consegue pegar [o teatro], capturar na caixinha, só quem vive aquele momento. Eu acho isso muito lindo, porque é realmente o que a vida é e o que a gente é.”

Com a pandemia, o cenário piorou. “Parece que estava uma ferida e alguém colocou um band aid, e todo mundo estava contente com aquele band aid. Só

que, na pandemia, os band aids caíram. O que era grave ficou mais grave”, explica. A abertura de teatros foi impensável não pelo distanciamento do público, mas pela necessidade das presenças em palco. Os editais da Lei Aldir Blanc trouxeram um respiro para alguns grupos e artistas, mas a atriz aponta falhas.

“Quem ainda tem aquele resto na conta, deixa pro próximo. A gente até chama isso de ética de trabalho. Envolvia um pouco de ética de nós mesmos, artistas. Que é ver que talvez tu não tenha a necessidade de agora ganhar aquela verba para deixar pro outro.”


Espetáculo Expedição Monstro Cia Indeterminada. Foto: Tom Peres

A artista viveu boa parte de 2020 com as economias reunidas em espetáculos e festivais de 2019. O teatro infantil foi o carro chefe do ano pré-pandêmico, com o espetáculo “Expedição Monstro”. Danuta até tentou produzir durante a quarentena, gravando com celular e computador. “Muitos colegas meus, que tinham condições financeiras, tinham um ‘paitrocínio’ [se referindo a colegas que contavam com auxílio dos pais] ou equipamentos em casa, estavam produzindo coisas lindas, indo para uma área mais audiovisual. E os tupiniquim ficaram nesse lugar ‘meu celular não grava direito, meu celular não tem nem memória pra isso’”, conta.


Os trabalhos só voltaram em agosto do ano passado. Entretanto, era difícil fazer arte no caos. “Como se faz arte numa guerra?”, reflete. “Artisticamente, me bloqueou. Eu só precisava comer e me manter viva”, completa.

Em 2021, Danuta voltou a participar de editais. Em um outro coletivo, que conseguiu uma boa verba, ela atua como produção, o que lhe permitiu respirar um pouco. Agora, a expectativa está na vacinação. Mas também existe o receio em como será a retomada. A organização financeira da verba da cultura preocupa a artista. Citando o novo livro da Fernanda Montenegro, “Ato, prólogo e epílogo”, ela relembra uma frase marcante:


“Tem uma hora que ela fala uma coisa, que é: Você conhece um país, quando você conhece os teatros desse país. O país se mostra com seus palcos. Indo em um palco gaúcho, atualmente, eu acho que a gente está muito mal. [...] Quando um país fecha escola, fecha teatro e abre cadeia, alguma coisa está errada”.


Com a lona guardada, não tem circo, nem artista circense


O Circo Bonaldo D'Italia, fixado temporariamente no bairro Rubem Berta, em Porto Alegre, é de uma tradicional família de artistas circenses. Vanessa Bonaldo é da 5ª geração. “Meu tataravô já tinha circo. Daí nós passamos por vários circos e, em 1995, a gente abriu o nosso”, conta. O circo já perdeu lonas e equipamentos em temporais, mas nunca tinha zerado a bilheteria como na pandemia.


Vanessa começou aos 7 anos na arte do circo. Hoje, ela atua no trapézio, com acrobacias aéreas e força capilar, em que fica suspensa pelos cabelos. “É uma apresentação quase já não vista nos circos, é bem raro”, conta. O pai de Vanessa tem 65 anos e ainda atua no trapézio, junto com a família. Os três filhos da artista também já atuam no circo. O mais velho é locutor e palhaço; a filha faz o show do tecido; e o mais novo, de 12, faz cama elástica e palhaço. “E está querendo aprender a fazer trapézio”, adiciona ela.

Vanessa Bonaldo se apresentando para o público, antes da pandemia. (Foto: arquivo pessoal)

A família chegou em Porto Alegre no início da pandemia. Estava tudo pronto para os espetáculos e apresentações. “No começo foi bem difícil, o pessoal do circo vive de bilheteria”, aponta. Estrelando na categoria de lona tradicional, fica difícil de serem abraçados por editais. “Quando existem, são poucos para circo, mas quando tem, não abrangem para nós do circo tradicional”, explica.


O grupo contou com a ajuda de moradores da região e da Associação de Circo do Rio Grande do Sul para sobreviver durante o isolamento. “A comunidade nos ajudou muito. O pessoal vinha, trazia cesta básica, perguntavam o que a gente estava precisando”, relata. O grupo participou de editais da Lei Aldir Blanc. “Ajudou muito, mas não conseguiu ajudar todos os artistas circenses”. Vanessa se refere aos circos pequenos, em cidades do interior, que acabaram não recebendo muita verba. No Bonaldo D’Itália, o grupo elaborou projetos com foco no online.


Espetáculo online: sem palmas e risadas


“É muito estranho a gente fazer um espetáculo só gravando, sem ter o público nem para bater palma. Os palhaços são os mais prejudicados porque eles trabalham com a risada das pessoas, que não estão ali para rir.”

Depois de todo esse tempo parados, os artistas foram afetados fisicamente. Quem faz apresentação aérea, como o caso da Vanessa, não pode ensaiar, porque a lona do circo ficava guardada. “No começo ficou todo mundo com o corpo dolorido, mas agora já estamos voltando ao normal”, relata. A ação do tempo também marcou presença. “As carretas e trailers ficaram parados e deram uma envelhecida. Agora a gente tem que recuperar, pintar tudo de novo para deixar legal”, afirma.


Apesar da volta dos espetáculos, o movimento ainda é moderado. A expectativa está na vacinação para que tudo volte ao normal. “Esperamos que as pessoas voltem ao circo”, conclui.

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