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Projetos sociais lutam para driblar dificuldades de moradores de rua em Porto Alegre

Iniciativas ajudam pessoas que vivem nas ruas devido ao aumento da desigualdade social durante a pandemia da covid-19


Foto: Matheus Bruxel — Agência RBS


O número de pessoas em situação de rua aumentou significativamente na capital gaúcha. O cenário preocupante, não deixa as vítimas expostas e vulneráveis somente à violência, mas agora, também ao vírus. Um dado recente que mostra isso é o da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), vinculada à Prefeitura de Porto Alegre, no qual aponta que cerca de 2,7 mil pessoas vivem em situação de rua na capital. Número que demonstra um aumento de 39,81% do que o registrado em 2019.


Enquanto de um lado os dados mostram uma dura realidade, do outro podemos observar o aumento significativo das ações de solidariedade destinadas aos moradores de rua. Mais de 60 iniciativas são promovidas em Porto Alegre, auxiliando o grupo, majoritariamente masculino, entre 25 e 45 anos, com um perfil itinerante e que relatam estar pela primeira vez em situação de rua.



Voluntários realizam ação com moradores de rua — Foto: Sopão Solidário POA


Uma dessas iniciativas é o Sopão Solidário Poa, que atende cerca de 100 pessoas em suas ações de entregas de alimentos. A iniciativa, idealizada pela técnica de edificações e estudante de engenharia civil Aline Rodrigues, surgiu após o nascimento de seu primeiro filho, quando em uma noite fria de inverno ela se perguntou sobre a situação das pessoas que viviam nas ruas. O questionamento, que não saiu de sua cabeça por dias, foi o empurrão que Aline precisava para dar o primeiro passo.


Sem pensar muito, postou em sua rede social uma lista com itens necessários para fazer uma sopa. Segundo ela, o esperado era que algumas pessoas curtissem e poucas entrassem em contato para doar os produtos. Para a sua surpresa, a postagem, sem muita intenção, viralizou e na manhã do dia seguinte ela já tinha tudo que precisava para iniciar a ação.


Atualmente, além de pessoas em situação de rua, o projeto atende também famílias carentes através das doações de cestas básicas. Com sede situada no bairro Passo das Pedras em Porto Alegre, a ação conta com mais de 300 voluntários cadastrados e 10 pontos de coleta distribuídos no estado.


Para Aline, fazer o bem sem olhar a quem é o objetivo do projeto que está em processo de conversão. Com os papéis todos encaminhados para aprovação, logo a ação será oficialmente uma Organização da Sociedade Civil (OSC), como são conhecidas as antigas ONGs, segundo o novo Marco Regulatório (MROSC). Mas os sonhos não param por aí, com o objetivo de ampliar os atendimentos a organização agora planeja adquirir uma Kombi. “Já está no ar a nossa vaquinha virtual para comprar a kombi, com isso vamos poder levar mais refeições nas ações e também coletar as doações de forma mais efetiva”, afirmou.


Apesar das dificuldades encontradas no caminho, Aline disse que nunca pensou em desistir e que a alegria de receber o reconhecimento das pessoas e de seus familiares, com as quais atua, é muito prazeroso. “Uma vez a irmã de um morador de rua, que infelizmente veio a falecer, me procurou para agradecer por tudo que havíamos feito por seu irmão, mas principalmente por não o julgarmos, nem o termos tratado com desprezo nos anos em que viveu na rua”, comentou.



Foto: Charlote Dafol


Outro projeto, também conhecido pelo trabalho realizado em Porto Alegre, é o Jornal Boca de Rua. A iniciativa, que completará 21 anos em agosto, foi idealizada por um grupo de jornalistas, que sentiram a necessidade de oportunizar um espaço, no qual as pessoas em situação de rua pudessem falar por si mesmas. Desta forma, ao invés de serem retratadas como vítimas ou estigmatizadas pela miséria, eles se tornam autoras de suas próprias narrativas, abordando em suas matérias assuntos relacionados a denúncias de violações sofridas por elas e por conhecidos que vivem ou já viveram nas ruas.


Os textos, fotos e ilustrações são definidas pelos próprios moradores de rua durante oficinas semanais que acontecem, geralmente, nas terças-feiras. Após os encontros eles se organizam para realizar entrevistas, colher informações e depoimentos para as matérias. O valor é arrecadado após a impressão do jornal, onde cada membro recebe uma quantidade de exemplares para comercialização, ficando com a integralidade das vendas, constituindo uma fonte de renda alternativa.


Atualmente, por conta da pandemia, o jornal também está à venda em formato digital, através de uma assinatura social. O Boca de Rua está vinculado à ONG ALICE (Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação) e é membro da International Network of Street Papers, entidade que reúne jornais e revistas produzidos por pessoas em situação de rua.


Elisângela Mara Escalante, de 42 anos, é ex-moradora de rua e participa do Jornal Boca de Rua há nove anos. Ela conta como foram os momentos em que esteve na rua, antes de conhecer o jornal: “Eu nunca havia passado por isso, vivi na rua por cinco anos. Era horrível, muito frio e a gente não conseguia dormir direito porque muitas vezes a polícia nos acordava com violência, queriam que a gente saísse do lugar onde estávamos dormindo”, relatou. Segundo ela, dormir era uma tarefa difícil, pois o medo a fazia acordar constantemente.


Elisângela foi morar na rua devido a um desentendimento com a família, que não aceitava seu relacionamento com o também ex-morador de rua Marcos Rodrigo da Silva. “Eu conheço o Marcos há mais de 20 anos e fui para a rua por causa dele. A gente começou a namorar e minha mãe não aceitou nosso namoro, então fomos viver juntos na rua”, contou.


O casal chegou a passar 28 dias vivendo em uma barraca em frente ao Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop 1), localizado na avenida João Pessoa, no bairro Santana: “Eu entrava lá, tomava banho, mas como o Marcos não conseguia entrar eu tive que arrumar uma barraca com uns amigos da rua, para dar banho de leito nele”. Segundo ela, essa foi a fase mais difícil, pois muitas vezes o companheiro ficava sozinho para que ela pudesse ir em busca de alimentos. “Aos fins de semana e à noite o Pop não atendia, então a gente tinha que se virar para comer”, concluiu.


Foi então que após um período atuando no jornal e com a arrecadação pela venda dos exemplares, eles conseguiram alugar um imóvel em Porto Alegre. Além disso, com a ajuda de pessoas ligadas ao Movimento Nacional de Rua e uma amiga do projeto, Marcos que é cadeirante conseguiu ser contemplado pelo benefício auxílio-doença do INSS.


Atualmente, além do Jornal, Elisângela também trabalha em outro movimento social, a padaria Amada Massa. Criada a partir das reuniões no Jornal Boca de Rua, a iniciativa tem como objetivo ser um sistema de apoio e de geração de renda para pessoas em vulnerabilidade social. A padaria funciona como um clube de pães, com assinatura mensal no qual o assinante pode escolher se quer retirar na padaria ou receber o pão em casa. “Conheci alguns colegas do Jornal Boca de Rua e montamos uma associação de moradores de rua, conseguimos alguns assinantes para o clube de pães e hoje nós fazemos e entregamos os pães”.


Prefeitura desenvolve políticas públicas para pessoas em situação de rua


Como forma de combater ou ao menos reduzir o número de pessoas em situação de rua, a Prefeitura de Porto Alegre, segundo o chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), Carlos Simões Filho, tem apostado na promoção de políticas públicas voltadas para o público das ruas.


Confira as políticas públicas desenvolvidas pela prefeitura municipal de Porto Alegre



Além disso, com a pandemia, outra preocupação da administração municipal é quanto à vacinação das pessoas que vivem nas ruas. Após alguns levantamentos e com a ajuda da Fasc a prefeitura iniciou no dia 2 de junho a imunização deste público. Atualmente, segundo o assessor, mais de mil moradores de rua já foram vacinados contra a Covid-19.


Já vacinamos cerca de 1100 moradores de rua contra a covid. Isso foi uma conquista que o Prefeito Mello conseguiu com o apoio do corpo técnico da fundação de assistência e da rede social, diferente de várias cidades do Brasil.”, afirmou


A falta de dados é um problema


A antropóloga Caroline Sarmento, que atua como voluntária no Jornal Boca de Rua e é pesquisadora acadêmica, conta sobre sua experiência e dá detalhes sobre a situação dos moradores na capital.


Qual a sua formação?

Tenho formação em biblioteconomia e ciências sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), eu sou mestra em antropologia social pelo programa de pós-graduação em antropologia social também na UFRGS.


Como foi o seu primeiro contato com as pessoas em situação de rua?

Eu ingressei em 2015 no projeto de extensão, de antropologia da UFRGS, coordenado pela professora Patrícia Schuck que tinha como objetivo participar dos circuitos que a população de rua seguia em Porto Alegre. Então eu me inseri no jornal Boca de Rua, que é um jornal feito pela população de rua com apoio de jornalistas e estudantes que recebem o nome de colaboradores que é o meu caso.


De onde veio o interesse de estudar e trabalhar em lugares como o Boca de Rua?

Meu interesse é anterior ao ingresso no projeto de extensão, quando idealizei um projeto social de escuta empática e distribuição de sanduíches em uma praça no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre, durante o ano de 2014. Junto com minha melhor amiga Zuleica Branco, bibliotecária da biblioteca central da UFRGS. A gente distribuía toda a sexta-feira, sanduíches e conversava com o pessoal que morava na rua naquele espaço. E ali comecei a ter um contato um pouco mais próximo e de maior compreensão da realidade deles.


É possível afirmar que o desemprego é a principal causa para tantas pessoas estarem em situação de rua?


Não podemos afirmar isso categoricamente, pois os dados estão desatualizados. O último censo realizado em Porto Alegre foi em 2016, quando a prefeitura fez uma parceria com a UFRGS. Eu tive a oportunidade de trabalhar nessa pesquisa e na época nós encontramos muitas informações com relação à motivação dos moradores de rua e o desemprego representava somente 8,9% das respostas, enquanto a principal razão era o uso de drogas e o alcoolismo. Além disso, problemas familiares, como separações, decepções amorosas, maus tratos ou o falecimento de algum familiar geravam um percentual de 32,5%.

Como podemos ver, naquela época não era o desemprego a principal causa, porém com a pandemia e outra série de fatores, isso pode ter realmente mudado, entretanto, sem uma análise não há como afirmar.


As políticas públicas são suficientes para acolher essas pessoas?


São perguntas que dariam um amplo debate com diferentes perspectivas e pontos de vista de diferentes pesquisadores sobre o tema. Para fazermos políticas públicas de qualidade, a gente precisa do básico que são os números, por isso o censo é tão importante, não só da população de rua mas o censo do IBGE, no qual as pessoas em situação de rua não são contadas. Com isso o agente público pode saber como atuar para promover políticas públicas suficientes que façam com que as pessoas possam viver com dignidade. Portanto, precisamos de dados e da boa vontade do poder público para que isso possa acontecer. E por isso as pessoas em situação de rua, os trabalhadores de assistência, os trabalhadores da saúde estão cotidianamente na luta para que isso aconteça.


O que falta para que essas pessoas possam realmente serem amparadas e deixem de ser discriminadas pela sociedade?


Essa pergunta gera um enorme debate, pois tem muitas respostas e possibilidades de discussão, então vou falar a partir do meu lugar como pesquisadora e militante da causa.

O maior problema é que a sociedade vê essas pessoas como um peso para os cofres públicos, porém de acordo com o último censo apenas 3,1% dos moradores de rua afirmaram não fazer nada para o seu sustento. Então de alguma forma eles contribuem com impostos para o governo, são gente como a gente. A partir disso, as pessoas precisam entender que a dificuldade é bem maior que a contribuição. As ruas são perigosas, à noite, enquanto estamos seguros em nossos lares, esse público pode sofrer diversos tipos de violência, o que faz com que eles durmam somente durante o dia por se sentirem mais seguros. Essas pessoas precisam ser respeitadas como quaisquer outros cidadãos, no sentido do amplo dos seus direitos. É claro que a realidade delas é muito diferente da nossa, e eu não estou romantizando a vida nas ruas, por isso também é necessário vê-las por suas singularidades e especificidades. E esse tipo de coisa a gente só faz conhecendo a realidade de cada uma, por isso é tão importante sabermos os números, as características e o perfil deste público.






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